sexta-feira, 8 de abril de 2011

A salvação impossível

José Castello*
A pintura "Vênus com Espelho", de Ticiano: para Tzvetan Todorov,
a beleza é mais que um prazer ou uma felicidade;
 ela é o sentimento de uma "realização interior"

Literatura: Ideia da arte como remédio para os males humanos
é o tema do belo ensaio "A Beleza Salvará o Mundo",
 do búlgaro Tzvetan Todorov.

A arte é a busca obsessiva da beleza. É, ainda, a convicção profunda de que só a beleza - incorporada a uma tela, a um concerto, a um poema - é capaz de salvar o mundo. Salvá-lo de quê? Da fragmentação, da incoerência, da dispersão, da decadência. Em uma palavra: da fraqueza humana. Como dela nunca nos livramos, ao fim, e apesar da beleza que consegue gerar, a arte só realça nossa fraqueza.
A ideia da arte como remédio para os males humanos é o tema de "A Beleza Salvará o Mundo", inspirado ensaio do búlgaro Tzvetan Todorov. Antes de pensar na arte e em seus encantos, Todorov se sente obrigado a considerar o que é a beleza. Como defini-la? No mundo de hoje, a beleza está associada à moda, aos cosméticos, ao design, ao sucesso. É sempre assim: o que é belo para um pode ser horrendo para o outro. Todorov pensa, porém, não na beleza como um produto, mas como um sentimento. O que produz o sentimento de beleza - o que faz com que, mesmo uma paisagem desértica ou uma mulher feia tenham o poder de apaixonar? Responde Todorov: é a "sensação de habitar plena e exclusivamente o presente".
Vivemos divididos entre o peso das lembranças e a atração fatal pelas utopias. Conservamos um pé no passado, outro no futuro e, no entanto, não habitamos nem passado nem futuro, habitamos o presente. O presente: eis tudo o que temos. Naqueles momentos especiais em que, subitamente e de modo extremo, experimentamos a presença do presente, estamos, na verdade, diante da beleza. A beleza não é um ideal distante, é um efeito da vida.
A beleza, Todorov distingue, é mais que um prazer ou uma felicidade: ela é o sentimento de uma "realização interior". Vislumbramos a beleza quando somos tomados por um sentimento de plenitude. Muitos têm essa experiência com a religião. Outros com as ideologias políticas, o engajamento em grandes causas, as aventuras de alto risco. Contudo, a fé sempre pode nos falhar. As ideologias políticas entram em pane, grandes causas nem sempre são grandes e as aventuras podem nos conduzir à morte. A arte, não. Uma tela de Rembrandt ou de Ticiano. Uma sinfonia de Beethoven ou de Mahler. O "Quixote", as "Mil e Uma Noites", a "Divina Comédia". Estão sempre a nos esperar, nunca nos falharão.
Reprodução
O escritor Oscar Wilde,
para quem a beleza era o próprio sentido da vida:
 "É melhor ser belo do que bom", escreveu no seu famoso romance
"O Retrato de Dorian Gray"
Claro, a arte também nos oferece uma sensação fugaz - que se encerra logo que damos as costas a uma tela ou fechamos um livro. Mas, enquanto a fruímos, conservamos a sensação - que Vinicius descreveu um dia - do "eterno enquanto dure". A beleza não é algo que se vê - mas algo que se vive. Não é algo de que se desfrute, é um ato. Não está no passado ou no futuro, está entre nós ou não está.
Grandes artistas, como Oscar Wilde, Rainer Maria Rilke e Marina Tsvetaeva, os três personagens escolhidos por Todorov, ilustram esse elo radical entre arte e vida, entre obra e ato. Ao contrário das religiões ou das ideologias, que buscam o Absoluto coletivo, ele argumenta, a arte busca o Absoluto individual, e a vida de Wilde, a de Rilke e a de Marina ilustram isso. Os três transformaram a célebre sentença de Fiodor Dostoievski - "A beleza salvará o mundo" - no sentido da vida.
A busca da Beleza não é, porém, o caminho do Paraíso; ao contrário, ela tem um preço doloroso. Seus perseguidores costumam enfrentar inimigos ferozes e experimentar sofrimentos tenebrosos. Por isso, reflete Todorov, hoje, em vez de preferir os santos e os heróis, preferimos "os seres errantes e falíveis como nós mesmos". E quem mais próximo dessa divisão interior que os artistas? "Os heróis imperfeitos de nosso tempo incitam não à imitação ou à submissão, mas ao exame e à interrogação." Servidores da beleza, Wilde, Rilke e Marina não tiveram vida fácil. Não se chega à beleza na carruagem esplendorosa dos ideais, mas tomando o atalho nevoento do humano.
Por que eles três? Os três nasceram entre 1848 e 1945. Embora nunca tenham se encontrado, provaram do mesmo desejo amargo. São três seres deslocados de seu centro. Irlandês, Wilde viveu também na França e na Itália. Nascido em Praga, Rilke passou parte importante de seu tempo na Espanha e na Dinamarca. Apesar de ter crescido na Rússia, Tsvetaeva viveu na Alemanha, na Tchecoeslováquia e na França.
A poeta russa Marina Tsvetaeva pregava uma existência à luz da Arte em que a beleza se tornasse uma manifestação do Absoluto
Wilde viveu declaradamente para a beleza, o que se materializa em sua paixão fatal por lorde Alfred Douglas. Via-se como Apolo, perseguindo (e pagando alto preço por isso) o suave Hiacinto. Em seu célebre "Dorian Gray", encontramos a frase que sintetiza seu destino: "É melhor ser belo do que bom". A ideia do Absoluto o fascinava. Escreveu: "O verdadeiro artista é um homem que crê absolutamente em si mesmo porque ele é absolutamente si mesmo". Se é a experiência do Absoluto, a beleza pode levar, também, à desgraça. Isso porque, ao tomar a beleza como objeto, o artista se torna seu prisioneiro. O artista, Wilde acreditava, é "um escravo da beleza". Para ele, o gozo da beleza não exclui, ao contrário inclui, a submissão e o sofrimento.
Toda a perseguição sofrida por Wilde em consequência do amor proibido por lorde Douglas - amor pela beleza - levaram-no a uma vida miserável e errante. Destino que o prende ao poeta tcheco Rainer Maria Rilke, para quem a busca do Absoluto justificou todo o sofrimento. Apesar das grandes paixões que experimentou, ele prezava, antes de tudo, a solidão. "Uma solidão estável, e não buscarei outra coisa" - e, nesse aspecto, sua vida se parece com a de Franz Kafka, ele também um homem incapaz de se dividir. O amor ideal, pensava Rilke, seria o amor a Deus, "pois Deus não impõe nenhuma limitação ao amante". Amor a Deus, isto é, amor à perfeição. Experiência acima do humano e da ordem do inalcançável.
Acreditava Rilke que se deve preferir a ausência do ser amado à sua presença - porque só assim aumentavam as chances de tocar o Absoluto. Assim como sofria de uma necessidade imperiosa de ser amado por uma mulher, o que o aproximava de Don Juan, o poeta acreditava que nenhuma mulher corresponderia a seu desejo. Dela chegou um pouco mais perto na paixão que viveu com a pianista Magda Von Hattingberg, a quem chamava de "Benvenuta". Nas cartas à amada, reflete com um pouco menos de descrença sobre a possibilidade de aproximar vida e arte, isto é, de enfim tocar a beleza.
O objetivo do poeta, dizia Rilke, não é explicar o mundo, mas "vê-lo por dentro". Comenta Todorov: para Rilke, o poeta se assemelha a um cão, "que não deseja atravessar o mundo com o olhar, à maneira de um sábio, mas se instalar em seu interior". Esse instalar-se dentro do mundo - como um cão que se aninha em sua poltrona - levaria à beatitude. Seria, na verdade, a mais perfeita manifestação do sentimento de beleza. Rilke apostou tudo no amor por Magda (identificou-a com a beleza) e, quando esse amor fracassou, escreveu à amiga Lou Andréas-Salomé: "Não estive à altura de uma tarefa pura e radiante". Passa a se ver como um homem doente, sempre aquém de seu ideal absoluto. Em uma carta à amada, publicada postumamente, sintetiza: "Não ousei, não me acreditava capaz de segurar o Sol". O Sol é a beleza, que não se pode tocar ou nos queimará.
Rilke foi um dos autores favoritos de Marina Tsvetaeva, a grande poeta russa, tradutora das célebres "Cartas a um Jovem Poeta" para o russo. Suas concepções a respeito da arte como uma elevação os aproximam. Escreveu Marina: "A poesia é a língua dos deuses. Os deuses não falam, os poetas falam por eles". Via também os poetas como seres errantes, em eterno exílio, já que procederiam do Reino Celeste e estariam perdidos na Terra. Quem busca a beleza erra. Duplo sentido do verbo "errar": perder-se e falhar.
Tambem Marina viu a arte não como uma admiração longínqua e intelectual da beleza, mas, ao contrário, como um mergulho em seu interior. A beleza está na obra, mas o artista é arrastado junto. "A arte não é uma emanação pura do mundo espiritual, é uma encarnação." Seria, em consequência, o lugar em que o espiritual e o físico se encontram. Uma encruzilhada, para onde confluem carne e espírito, desenhando o Absoluto. Pregava uma existência à luz da Arte - uma existência em que a beleza se tornasse uma manifestação do Absoluto. Tarefa impossível, fadada ao fracasso, e é por isso que para artistas como Wilde, Rilke e Marina a beleza nunca se separou da dor.

"A Beleza Salvará o Mundo - Wilde, Rilke e Tsvetaeva"
Tzvetan Todorov. Trad.: Caio Meira. Difel, 352 págs., R$ 45,00
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*Para o Valor, de Curitiba
Fonte: Valor Econômico online, 08/04/2011

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